quarta-feira, 5 de outubro de 2016

O mundo - Antoine Compagnon

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palavras sobre a página nem ns intenções do autor possuem a chave da significação de uma obra e nenhuma interpretação satisfatória jamais se limitou à procura do sentido de umas ou de outras. Ainda uma vez, trata-se de sair desta falsa alternativa*. o texto ou o autor. Por conseguinte, nenhum método exclusivo é suficiente.
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De que Dia a literatura? A mimèsis, desde a Poética c!e Aristóteles, é o termo mais geral e corrente sob o qual se conceberam as relações entre a literatura e a realidade. Na monumental obra de Erich Auerbnc.h, Mimèsis. La Representa tion de ia Rãalité dans la üttõrature Occidentaie (Mimese. A Representação da Realidade na Literatura Ocidental] (1946), a noção não era questionada. Auerbach traçava o panorama da evolução da literatura compreendendo muitos milênios, de Homero a Virgínia Woolf. Mas a mimèsis foi questionada pela teoria literária que insistiu na autonomia da literatura em relação à realidade, ao referente, ao mundo, e defendeu a tese do primado da forma sobre o fundo, da expressão sobre o conteúdo, do significance sobre o significado, da significação sobre a representação, ou ainda, da sèmiosis sobre a mimèsis. Como a intenção do autor, a referência seria uma ilusão que impede a compreensão da literatura como tal. O auge dessa doutrina foi atingido com o dogma da auto-refe- rencialidade do texto literário, isto é, com a idéia de que “o poenra fala do poema" e ponto final. Philippe Sollers denunciava cruamente, em 1965, o
pretenso realismo (...1, esse preconceito que consiste em acreditar que uma escritura eleve exprimir alguma coisu que não é datla nesta escritura, alguma coisa sobre a qual a unanimidade pode se fazer imediatamente. Mas é preciso ver que essa concordância só pode se dar sobre convenções prévias, sendo a própria noção de reotidncte uma convenção e um conformismo, uma espécie de contrato tácito entre o indivíduo e seu grupo social.1
Não há mais conteúdo nem fundo. Ler com vistas ã realidade, como quando se procura os modelos da duquesa de Guermantes ou de Alberrine, é enganar-se sobre n literatura.
Mas então, por que lemos? Pelas referências da literatura a ; ela mesma, O mundo dos livros obliterou completa mente o ; outro mundo, e não saímos nunca da “Biblioteca de Babel”, recolhida nas FicçÔes de Borges, livro culto dos anos teóricos que Foucault comentava na abertura de As Palavras e as Coisas 0966), e Gilles Deleuze em Dijjérence et Rêpêtition [Diferença e Repetição] (1968).
Os desenvolvimentos da teoria literária, observa Philíppe Hamon, levaram o problema da representação, da referência ou da mimèsis a “jumar-se, numa espécie de purgatório crítico”,2 ãs outras questões que a teoria bania, como a intenção ou o estilo. Essas questões tabus, como já disse, renasceram todas de suas cinzas, tão logo a teoria foi retirada, a tal ponto que logo, se prestamos atenção, será preciso lembrar que a literatura fala também da literatura. Depois do autor e de sua intenção, devemos deter-nos iras relações entre a literatura e o mundo.
Uma série de termos coloca, sem nunca resolvê-lo inteiramente, o problema da relação entre o texto e a realidade, ou entre o texto e o mundo: mimèsis, evidentemente, termo aristoté- lico traduzido por “imitação” ou “representação" (a escolha de um ou outro é em si uma opção teórica), “verossimilhança”, “ficção”, “ilusão”, ou mesmo “mentira”, e, é claro, “realismo”, “referente” ou “referência”, “descrição”. Basta enumerá-los para sugerir a extensão das dificuldades. Há também os adágios, como o célebre utpictura, poesis, de Horácio (“como a pintura, n poesia", Arte Poética, v.36l), ou este outro famoso “a momentânea suspensão voluntária da incredulidade”, que é identificado geraímente ao contrato realista ligando autor e leitor, mesmo que se trate da ilusão poética proporcionada pela imaginação romântica que Coleridge descrevia nestes termos: ivillling suspension of disbeliaf for tbe momenl, wbich consta ut es poetic failb,5 Enfim, noções rivais deverão igualmente ser examinadas, como as de "dialogismo" ou de “intertextuaiidade”, que substituem â realidade, enquanto referente da literatura, a própria literatura.
Um paradoxo mostra a extensão do problema. Em Platão, na República, a mimèsis é subversiva, ela põe em perigo a união social, e os poetas elevem ser expulsos da Cidade em razão dc sua influência nefasta sobre a educação dos "guardiões”.
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No outro extremo, para Barthes, a mimèsis é repressiva, ela .consolida o laço social, por estar lígacla ã ideologia (a doxri) da qual ela é instrumento. Subversiva ou repressiva, a mimèsis? Para que ela possa receber qualificativos tão distanciados, não se trata, sem dúvida alguma, da mesma noção: de Platão a Barthes, ela foi completamente invertida, mas entre os dois, de Aristóteles a Auerbach, não se viu alteração alguma. Como foi feito a respeito da intenção, partirei de dois clichês adversários, o antigo e o moderno, para repensá-los e sairmos tle sua alternativa inümidante-. a literatura fala do mundo, a literatura fala da literatura.
CONTRA A MIMÈSIS
“A poética da narrativa", estima Thomas Pavel, "tomou como objeto o discurso literário na sua formalidade retórica, em detrimento cie sua força referencial’1.'1 A essa tendência geral da teoria literária, beneficiando a forma de um privilégio em detrimento da força, o artigo de Jakobson, já citado, “Lmgüística e Poética’1 (1960), não foi indiferente, longe disso, mas, ames dele, os fundadores da Linguística estrutural e da semiótica, Ferdinancl de Saussure e Charles Sanders Peirce, haviam estabelecido suas disciplinas voltando as costas ao "exterior referencial da linguagem”, segundo a expressão de Derrida, isto é, muito simplesmente, ao mundo das coisas. Em Saussure, a idéia do arbitrário do signo implica a autonomia relativa da língua em relação ã realidade e supõe que a significação seja diferencial (resultando da relação entre os signos) e não referencial (resultando da relação entre as palavras e ns coisas). Em Peirce, a ligação original entre o signo e seu objeto foi quebrada, perdida, e a série dos interpretantes caminha indefinida mente de signo em signo, sem nunca encontrar a origem, numa sèmiosis qualificada de ilimitada. Segundo esses dois precursores, pelo menos tal como a teoria literária os recebeu, o referente não existe fora da linguagem, mas é produzido pela significação, depende cia interpretação. O mundo sempre é já interpretado, pois a relação linguística primária ocorreu entre representações, não entre a palavra e a coisa, nem entre o texto e o mundo. Na cadeia sem fim nem origem das representações, o mito da referência se evapora.
identificado a essas premissas anti-referenciais, o texto de Jakobson foi o decãlogo da teoria, ou, pelo menos, uma de suas tábuas da lei, fundando a teoria literária segundo o modelo da linguística. Jakobson, lembramo-nos, distinguia aí seis fatores que definiam a comunicação — emissor, mensagem, destinatário, contexto, código e contato — e determinando seis funções linguísticas distintas. Duas dessas funções são aqui particularmente requisitadas: a função referencial, orientada para o co)itexto da mensagem, isto é, o real, e aquela que visa ã mensagem enquanto tal, tomada em si mesma, função que Jakobson chamava de poética. Jakobson acentuava que "seria difícil encontrar mensagens que preenchessem apenas uma única função",5 e ainda, que "toda tentativa de reduzir a esfera da função poética à poesia, ou de confinar a poesia à função poética, só chegaria a uma simplificação excessiva e enganosa".6 Ele observava, no entanto, que na arte da linguagem, isto é, a literatura, a função poética é dominante em relação ãs outras, e que ela prevalece em particular sobre a função referencial ou de nota t iva. Em literatura, a tônica recaída sobre a mensagem.
Esse artigo era bastante vago, mais programático que analítico. Nicolas Ruwet, seu tradutor de 1963, notou de imediato suas fraquezas: em primeiro lugar, a ausência de definição de mensagem, e, consequentemente, a imprecisão sobre a natureza real da função poética que acentua a mensagem; tratar-se-ia, no caso, de uma ênfase sobre a forma ou sobre o conteúdo d a mensagem? (Ruwet, 1989) Jakobson não esclarece, mas no clima contemporâneo de desconfiança quanto ao seu conteúdo, desconfiança ã qual o próprio artigo contribuiu, concíuiu-se tacitnmente que a função poética estava associada exclusiva mente (ou quase) ã forma da mensagem. As precauções de Jakobson não impediram sua função poética de tornar-se determinante para a concepção, usual desde então, da mensagem poética como subtraída ã referencialidade, ou da mensagem poética como sendo para si mesma sua própria referência: os clichês de autotelismo e auto-referencialidade estão, assim, no horizonte da função poética jakobsoniana.
Uma outra fonte da denegação da realidade operada pela teoria pode ser encontrada no modelo que Lévi-Strauss, no imediato pós-guerra — em seu artigo programa, “L* Analyse Stmcturale en Linguisrique et en Anrhropologie" [A Análise
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Estrutural em Lingüística e em Antropologia] (1945), que já se inspirava em Jakobson — fornecia á antropologia e às ciências humanas em geral; o da linguística estrutural, em particular o da fonologia. Baseando-se nisso, a análise do mito, em seguida a da narrativa, por sua vez segundo o modelo do mito, deu lugar ao privilégio da narração, como elemento da literatura, e, em consequência, ao desenvolvimento da narratologia francesa, como análise das propriedades estruturais do discurso literário, da sintaxe de suas estruturas narrativas, em detrimento de tudo o que nos textos concerne à semântica, à mimèsis, à representação do real, e, sobretudo â descrição. Na dualidade narração e descrição, convencionalmente pensada como constitutiva da literatura, todo esforço orientou-se para um único pólo, a narração e sua sintaxe (não sua semântica). Para Barthes, por exemplo, na “íntroduction â l'Analyse Structurale des Récits” (Introdução à Análise Estrutural da Narrativa! 0966), texto chave da narratologia francesa, o realismo e a imitação só merecem o último parágrafo desse longo artígo-manifesto, como desencargo de consciência, porque é preciso, apesar de tudo, falar desses velhos tempos, mas a referência n eles é explicitamente considerada acessória e contingente em literatura;
A função cia narrativa não é a de “representar’', mas de constituir um espetáculo que ainda permanece muito enigmático, mas que não podería ser da ordem mimética. I..,] “O que se passa", na narrativa não é, do ponto de vista referencial (real), ao pé da letra, nada; "o que acontece", é só a linguagem inteiramente só, a aventura da linguagem, cuja vinda não deixa nunca de ser festejada.7
Barthes cita, em nota, Mallarmé para justificar essa exclusão da referência e esse primado da linguagem, porque é exatamente a linguagem, tornando-se, por sua vez, a protagonista dessa festa um pouco misteriosa, que se substitui ao real, corno se fosse necessário, ainda assim, um real. E, na verdade, salvo se reduzirmos toda a linguagem a onomatopéias, em,que sentido eln pode copiar? Tudo o que a linguagem pode imitar é a linguagem; isso parece evidente.
Se o encontro de Jakobson com Lévi-Strauss, em Nova York, durante a Segunda Guerra mundial, foi importante para
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o clestino do formalismo francês, outros fatores menos circunstanciais estavam igualmente na origem do dogma da auto-referenciaüdade, sobretudo a autonomia reivindicada para as obras literárias pelas principais doutrinas do século XX, a partir de Mallnrmé, ou a "clausura do texto", tanto para os formalistas russos quanto para o New Crilicism americano no entre-guerras, ou ainda a substituição do texto pela obra, caída no esquecimento, juntameme com o autor, enquanto o rexto só pode resultar do jogo das palavras e das virtualidades da linguagem. Para excluir o conteúdo do estudo literário, a teoria segue o movimento da literatura moderna, de Valéry e Gide, que já desconfiavam do realismo — "a marquesa saiu às cinco horas" —, a André Breton ou Raymond líoussel, de quem Foucault fez o elogio, ou ainda a Raymond Queneau e ao Oulipo (a literatura sob coação), depois dos quais é difícil ir mais longe na separação entre a literatura e a realidade. A recusa da dimensão expressiva e referencial não é própria à literatura, mas caracteriza ó conjunto da estética moderna, que se concentra no "médium" (como no caso da abstração em pintura).
A MIMÈS1S DESNATURALIZADA
Se a mimèsis, a representação, a referência figuraram entre as ovelhas negras da teoria literária, ou se a teoria literária as baniu e transformou-as num impasse, resta compreender -como ela pôde ao mesmo tempo reivindicar sua filiação profunda à Poética de Aristóteles, cuja mimèsis é, entretanto, o conceito capital para a própria definição da literatura. Foi a partir daí que se disseminou a idéia corrente, até as teorias do século XX, sobre a arte e a literatura como imitação da natureza. Ora, a teoria literária reivindica a. herança aristorélica “ e,' entretanto,’ exclui essa”qüestãcrfundamental desde Aristóteles. Isso deve ser o resultado de unia mudança no sentido do termo mimèsis, cujo critério é, em Aristóteles, a verossimilhança em relação no sentido natural (eikos, o possível), ■ enquanto nos poéticos modernos, ela se tornou a verossimilhança em relação ao sentido cultural (eloxa, a opinião). A reinterpretação de Aristóteles era indispensável para promover uma poética anti-referencial que pudesse apoiar-se na dele.
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No livro III cia República, Platão, lembro-o sueintnmeme; distinguia, no que se refere ao que ele chamava de diègesis ou narrativa, três modos segundo a presença ou ausência de discurso direto; são os modos simples, de resto não atestado, quando a narrativa está inteiramente em discurso indireto; o modo imitai ivo, ou nmnèsts, como na tragédia, quando tudo está em discurso direto; e o modo misto, quando a narrativa, como na ilíada, eventual mente .dá a palavra aos personagens e mistura, pois, discurso indireto e discurso direto (392d-394a). A mimèsis, segundo Platão, dá a ilusão de que a narrativa é conduzida por um outro que não o autor, como no teatro, onde o termo encontra, aliás, sua origem (mimeisthai). Quando Platão volta ã mimèsis, no livro X, é para condenar a arte como -‘imitação da imitação, distante dois graus daquilo que é" (596a-597b). Ela faz passar a cópia por original e afasta a verdade; por isso Platão quer expulsar da Cidade os poetas que não praticam a diègesis simples.
Aristóteles, no entanto, na Poética, modifica o uso do termo mimèsis (cap.lll); a diègesis não é mais n noção mais geral definindo a arte poética, e texto dramático e texto épico não se opõem mais, no-interior.da diègesis, como mais mimédeo e menos mimérico, mas a mimèsis torna-se, ela mesma, a noção mais geral, no interior da qual drama e epopéia se opõem em termos de modo direto (representação da história) ou indireto (exposição da história). A mimèsis recobre doravante não apenas o drama, mas também aquilo que Platão chamava de diègesis simples, isto é, a narrativa ou a narração. Segundo a concepção aceita desde então, essa extensão aristotélica da mimèsis ao conjunto da arte poética coincide com uma banníi- zação da noção que passa a designar toda atividade imitativa (cap.1V), e toda poesia, toda literatura como imitação.
A teoria literária, invocando Aristóteles e negando que a literatura se refira à realidade devia, pois, mostrar, através de uma retomada do texto da Poética: que a mimèsis, à 1 iá s, *h u n cn definida por Aristóteles, não tratava, na verdade, ém primeiro lugar da imitação em geral," mas que foi depois de um malentendido, ou de um contra-senso, que essa palavra se viu sobrecarregada da reflexão plurissecular sobre as relações entre a literatura e a realidade, segundo o modelo da pintura. Para chegar-se a essa distinção, basta observar que, na Poética, Aristóteles não menciona, em lugar nenhum, outros
objetos da mimèsis {mimèsis praxeos) a não ser as ações humanas (cap.ll); em outras palavras, basta observar que a mimèsis aristotélica conserva um elo forte e privilegiado com a arte dramática, em oposição ao modelo píctural — a tragédia é, aliás, superior ã epopéia, segundo Aristóteles — mas sobretudo que aquilo que cabe à mimèsis, tanto na epopéia como na tragédia, é a história, mutbos, como mimèsis dn ação; trata-se, pois, de narração e não de descrição: “A tragédia”, escreve Aristóteles, "é mimèsis não do homem, mas da ação" 0450a 16). E essa representação da história não é analisada por ele como imitação da realidade, mas como produção de um artefato poético. Em outras palavras, a Poética não acentua nunca o objeto imitado ou representado, mas o objeto imitador ou representante, isto é, a técnica da representação, a estrutura do mutbos. Enfim, colocando tragédia e epopéia, ambas sob a mimèsis, Aristóteles demonstra preocupar-se muito pouco com o espetáculo, com a representação no sentido de encenação, e volta-se essencialmente para a obra poética enquanto linguagem, bgos, mutbos e lexis, enquanto texto escrito e não realização vocal. O que lhe interessa, no texto poético, é sua composição, sua poièsis, isto é, a sintaxe que organiza os fatos em história e em ficção. Donde o esquecimento da poesia lírica, jamais mencionada por Arisróteles, já que lhe falta, como à história de Heródoto, a ficção, isto é, a distância. A exclusão da poesia lírica seria mesmo a prova de que a mimèsis aristotélica não visa ao estudo das relações entre a literatura e a realidade, mas â produção da ficção poética verossímil. Resumindo, a mimèsis seria a representação de ações humanas pela linguagem, ou é a isso que Aristóteles a reduz, e o que lhe interessa é o arranjo narrativo dos fatos em história: a poética seria, na verdade, uma narratologia.
Eis, muito brevemente, como invocar a caução de Aristóteles — deixando a distância a questão que nele sempre pareceu central —, para manter uma conformidade entre a Poética e os formnlisras russos e seus discípulos parisienses. Esses três gestos, reduzindo a mimèsis às ações humanas, à técnica da representação, e enfim, à linguagem escrita, são levados a termo, por exemplo, na sua introdução, por Roselyne Dupont-Roc e Jean Lallor, autores da nova tradução da Poética, na coleção “Poétique”, em 1980, tornando compatíveis os dois empregos do termo por Aristóteles, de um lado, por Genette,
Todorov e a revista Poétique, de outro. Em suma, com o nome de poética, Aristóteles queria falar da sèmiosis e não da mimèsis literária, da narração e não da descrição: n Poética é a arte da construção da ilusão referencia]. O importante não é que essa interpretação seja mais verdadeira ou mais falsa que a leitura tradicional, fazendo a mimèsis suportar as relações entre a literatura e a realidade — toda época reinterpreta e retrnduz os textos fundamentais ã sua maneira: compete aos filólogos determinar, decidir se há contra-senso; o importante é que, ao contrariar a acepção habitual da mimèsis, a realidade foi abolida da teoria-, salvou-se Aristóteles do lugar-comum, fazendo da literatura uma imitação da natureza e, pressupondo que a língua pudesse copiar o real, separou-se a mimèsis do modelo pictural, da utpictura, poesis, deslizou-se da imitação ã representação, do representado ao representante, da realidade à convenção, ao código, à ilusão, ao realismo como efeito formal.
Assim, passou-se da natureza Çeikos) à literatura, ou à cultura e ã ideologia (doxa), como referência da mimèsis. O deslocamento não era, aliás, inteiramente inédito. Com o nome de "imitação'’, a ambiguidade entre mimèsis como imüalio naiurae e como imitatio antiquorum reinava há muito tempo. A doutrina clássica levantou a dificuldade, sem resolver o problema, decidindo que, como os Antigos tinham sido os melhores imitadores da natureza, imitar os Antigos era também imitar a natureza, e vice-versa. Mas, diante de uma natureza nova como a que encontraram os viajantes no Oriente ou na América, a partir da Renascença, os modelos da Antiguidade impediram de perceber a diferença e reconduziram o desconhecido ao conhecido. O dilema entre natureza e cultura existia desde Aristóteles que escrevia, no início do Capítulo IX da Poética: “o papel do poeta é dizer não o que ocorreu realmente, mas o que pocleria ter ocorrido na ordem do verossímil ou do necessário" (1451a 36). Ora, Aristóteles dizia pouca coisa a respeito do necessário ianankaioii), isto é, natural, mas dizia muito sobre o verossímil ou sobre o provável (eikos), isto é, o humano. Nós nos situamos, em aparência, na ordem dos fenômenos, mas Aristóteles fazia logo passar o verossímil para o lado do que era suscetível de persuadir (pithanon), quando afirmava que "é preciso preferir o que é impossível mas verossímil (aciunata eikotn) ao que é possível mas não persuasivo
(duuaia apilbciná)" (1460a 27), e mais adiante afirmava: "Um impossível persuasivo (pitbanon aditnaton) é preferível ao não-persuasivo, ainda que possível (apitbauon di matou)” (l4ólb n). Desse modo, a antonímia de eihosCo verossímil) torna-se apitbauon (o não-persuasivo), e a mimèsis encontra-se nitidamente reoríentada para a retórica e a doxa, a opinião. O verossímil, como insistirão os teóricos, não é, pois, aquilo que pode ocorrer na ordem do possível, mas o que é aceitável pela opinião comum, o que é endoxal e não paradoxal, o que corresponde ao código e às normas do consenso social. Essa leitura do eikosda Poética como sinônimo da doxa, como sistema dc convenções e expectativas antropológicas e sociológicas, enfim, como ideologia decidindo sobre o normal e o anormal, se ela afasta mais a mimèsis da realidade para ver nela um cócligo, ou mesmo uma censura, não é inieirnmente sem Fundamento. Afinal de contas, na idade clássica, o verossímil era comprometido com as conveniências, como consciência coletiva do decontm, ou daquilo que era conveniente, e dependia explicitamente de uma norma social.
O REALISMO: REFLEXO OU CONVENÇÃO
A teoria literária — acabamos de constatar, mais uma vez, pela releitura da Poética — é inseparável de uma crítica da ideologia, que teria como propriedade a certeza, isto é, ser natural, ao passo que, na verdade, é cultural (é o lema de uma boa parte da obra de Banhes). A mimèsis faz passar a convenção por natureza. Pretensa imitação cia realidade, tendendo a ocultar o objeto mutante em proveito do objeto imitado, ela está tratli cio na Imente associada ao realismo, e o realismo no romance, e o romance ao individualismo, e o individualismo à burguesia, e a burguesia ao capitalismo: a crítica da mimèsis é, pois, in fine, uma crítica da ordem capitalista. Do Renascimento ao final do século XIX, o realismo identificou-se sempre, cada vez mais, ao ideal de precisão referencial da literatura ocidental, analisado no livro de Auerbach, Mimèsis. Auerbach esboçava a história da literatura acidental a partir do que ele definia como objetivo próprio: a representação dn realidade. Através das transformações de estilo, a ambição da literatura, fundada na mimèsis,
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era relatar de maneira cada vez mais autêntica a verdadeira experiência dos indivíduos, divisões e conflitos opondo o indivíduo ã experiência comum. A crise da mimèsis, como a do autor, é uma crise do humanismo literário, e, ao final do século XX, a inocência não nos é mais permitida. Essa inocência relativa ã mimèsis era ainda n de Georg Lukács, que sc baseava na teoria marxista cio reflexo para analisar o realismo como ascensão do individualismo contra o idealismo.
Recusar o interesse pelas relações entre literatura e realidade, ou tratá-las como uma convenção, é, pois, de alguma maneira, adotar uma posição ideológica, antiburguesa e a n ti ca pita lista. Mais uma vez a ideologia burguesa é identificada a uma ilusão linguística: pensar que a linguagem pode copiar o real, que a literatura pode representá-lo fielmentc, como um espelho ou uma janela sobre o mundo, segundo as imagens convencionais do romance. Foucault, em As Palavras e as Coisas, atacava assim a metáfora da ‘'transparência” que atravessa toda a história do realismo, e empreendia a arqueologia cia "grande utopia de uma linguagem perfeitamente transparente em que as próprias coisas seriam nomeadas limpidamente’1.8 Toda a obra de Derrida pode ser compreendida, também ela, como uma desconsirução do conceito idealista de mimèsis, ou como uma crítica do mito da linguagem como presença. Blanchot, ames deles, apoiara-se na utopia da adequação da linguagem para exaltar, por contraste, uma literatura moderna, de Hõlderlin a Mallarmé e a Kafka, em busca da imransitividade.
Em conflito com a ideologia da mimèsis, a teoria literária concebe, pois, o realismo não como um "reflexo” da realidade, mas como um discurso que tem suas regras e convenções, como um código nem mais natural nem mais verdadeiro que os outros. O discurso realista não foi menos o objeto de predileção da teoria literária, depois que sua caracterização formal definitiva foi elaborada por Jnkobson, já em 1921, num artigo intitulado; "Du Réatisme en Art” fDo Realismo na Arte!. Ele propunha então definir o realismo pela predominância da metonímia e da sinédoque, em oposição ao primado da metáfora no romantismo e no simbolismo. Jakobson manteve essa distinção em 1956, num outro artigo importante, “Deux Aspects du Langage et Deux Types cfAphasie" [Dois Aspectos da Linguagem e Dois Tipos de Afasia]: “Seguindo a via das
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relações de contigüidade, o autor realista opera digressões meconímicas da intriga ã atmosfera e dos personagens ao quadro espaço-tempornl. Ele se orgulha dos detalhes sine- dóquicos."9 A escola literária conhecida com o nome de realismo é assim caracterizada, mas também, e mais geralmente, um certo tipo de discurso que atravessa toda a história, na base da dupla polaridade metafórica e metonúnica que caracteriza, segundo Jakobson, a linguagem.
A teoria esrruturalisra e pós-estruturaiista foi radicalmente convencionalista, isto é, opôs-se a toda concepção referenciai da ficção literária. Seguindo esse convencionalismo extremo, Pavel observa:
Os textos literários rtáo falrtm nunca de estados de coisas que lhes seriam exteriores: tudo o que nos parece Fazer reFerência a um fora-do-texto é regido, na verdade, por convenções rigorosas e arbitrárias, e o fora-do-tc.\to é, em consequência, o eFeito enganador de um jogo de ilusões.10
Não apenas a teoria francesa teve por ideal o equivalente ã abstração em pintura, mas julgou que toda literatura dissimulava sua necessária condição abstrata. O realismo foi considerado, consequentemente, como um conjunto de convenções textuais, quase da mesma natureza que as regras da tragédia clássica ou do soneto. Essa exclusão da realidade é declaradamente excessiva: as palavras e as frases não podem ser assimiladas n cores e formas elementares. Em pintura, as convenções da representação são diversas, mas a perspectiva geométrica é mais realista que outras convenções. Não se trata, pois, nem de aprovar nem de refutar essa rejeição da referência, mas de compreender por que e como ela se expandiu com tanto sucesso, e por que o dialogismo de Mikhail Bnkhtine não foi suficiente para reintrocluzir uma dose de realidade social e humana.
O realismo, esvaziado enquanto conteúdo, foi pois analisado como efeito formal, e não parece exagero dizer que, em realidade, toda a narratologin francesa mergulhou no estudo do realismo, seja Todorov em Littêmture et Significatian [Literatura e Significação] (1967), e também, em sentido inverso ou pelo absurdo, em fntrochictian à la Littêmture Fantastique [introdução ã Literatura Fantástica] (1970); Genette em “Discours du Récir" [Discurso da Narrativa] (1972); Hamon
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nos seus estudos sobre a descrição e o personagem; Barthes, enfim, cujas páginas sobre “L’Effet de ttéel" [O Efeito de Reall (1968) levam ao limite extremo esse tipo de análise. Mas seria necessário mencionar também tudo o que foi feito segundo o modelo das funções de Vladímir Propp, da lógica da narrativa de Clnude Bremond, dos actantes e das isotopins de A. J. Greimns, que, à sua maneira, trabalham no mesmo terreno e tentam pensar o realismo como forma. Por ser o realismo a ovelha negra da teoria literária, ela quase só falou dele.
ILUSÃO REFERENCIAL E INTERTEXT UAL IDADE
Se, como quer a linguística saussuriana, da qual depende a teoria literária, a língua é forma e não substância, sistema e não nomenclatura, se ela não pode copiar o real, o problema torna-se o seguinte-, nno mais "Como a literatura copia o real?", mas “Como ela nos fn2 pensar que copia o real?" Por quais dispositivos? Barthes afirmava em S/Z que
no mais realisia dos romances, o referente não tem "realidade": que se imagine a desordem provocada pela mais comportada das narrações, se suas descrições fossem tomadas ao pé da letra, convertidas em programas de operações, e, muito simplesmente, executadas. Em suma [...], o que se chama de "real" (na teoria do texto realista) não é nunca senão um código de representação (tle significação): não é nunca um código de execução.”
O texto não é executável como um programa ou um roteiro: isso é suficiente para que Barthes rejeite toda hipótese referencial na relação entre a literatura e o mundo, ou mesmo entre a linguagem e o mundo, para expulsar da teoria literária Lodas as considerações referenciais. O referente é um produto da sèmiosis, e não um dado preexistente. A relação linguística primária não estabelece mais relação entre a palavra e a coisa, ou o signo e o referente, 0 texto e o mundo, mas entre um signo e um outro signo, um texto e um outro texto. A ilusão referencial resulta de uma manipulação de signos que a convenção realista camufla, oculta o arbitrário do código, e faz crer na naturalização do signo. Ela deve, pois, ser reinrer- pretada em termos de código.
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Doravante, a única maneira aceitável de colocar a questào das relações entre a literatura e a realidade é formulá-la em termos de “ilusão referencial”, ou, segundo a célebre expressão de Barthes, como um “efeito de real1’. A questào da representação volta-se então para a do verossímil como convenção ou código partilhado pelo autor e pelo leitor. Que se observe o locus amoenus da retórica antiga nos relatos dos viajantes do Renascimento no Oriente ou na América, confirmando que não é nunca o próprio real que é descrito ou visto, mesmo quando se trata do Novo Mundo, mas sempre já um texto feito de clichês e de estereótipos. Barthes encontra o tom do Platão da República para afastar a literatura do real:
O realismo (muito mal nomeado, e de qualquer forma IVeqüen- temente mal interpretado) consiste não em copiar o real, mas em copiar uma cópia (pintada) do real [,..l É por isso que o realismo não pode ser cluimado de "copiador", melhor seria de "pasiichador" (por uma segunda mimèsis, ele copia o que já é cópia).n
A questào da referência volta-se, então, para a intertextunli- tlacle — “O código é uma perspectiva de citações’1 — li ou, como ainda escreve Barthes:
o artista realista não coloca em absoluto a “realidade" na origem de seu discurso mas, unicamente e sempre, por mais longe que se remonte, um real já escrito, um código prospectivo, ao longo do qual não apreendemos nunca, a perder de vista, senão uma cadeia de cópias.H
A referência não tem realidade: o que se chama de real não é senão um código. A finalidade da mimèsis não é mais a de produzir uma ilusão do mundo real, mas uma ilusão do discurso verdadeiro sobre o mundo real. O realismo c, pois, a ilusão produzida pela intertexlualidade: “O que existe por trás do papel não é o real, o referente, é a Referência, a ‘sutil imensidão das escrituras'.’1'5
Certa mente encontraríamos a noção de iniertexinaiiclade por muitos outros caminhos, na rede que liga os elementos da literatura, por exemplo, a partir da leitura, mas, como acabamos de ver em Banhes, para a teoria literária, os outros textos tomam explicitamente o lugar da realidade, e é a inteitextualidade
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que se substitui à referência. Assim se manifesta urna segunda geração cia teoria em Barthes, depois de uma primeira época inteiramente voltada para o texto na sua imanência, sua clausura, seu sistema, sua lógica, seu face a face com a linguagem. Depois da elaboração da sintaxe do texto literário, no momento em que uma semântica deveria ser trazida à luz, a intertextualidade se apresenta como uma maneira de abrir o texto, se não ao mundo, pelo menos aos livros, à biblioteca. Com ela passa-se do texto fechado ao texto aberto, ou pelo menos do estruturaUsmo ao que chamamos, âs vezes, cie pós-est naturalismo.
O termo interiexlo ou intertextualidade foi composto por Julia Kristeva, pouco depois de sua chegada a Paris, em 1966, no seminário de Barthes, para relatar os trabalhos cio crítico russo Mikhaíl Bakhtine e deslocara tônica dn teoria literária para a produtividade do texto, até então apreendido de maneira estática pelo formalismo francês: “Todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto.”16 A intertextunlidade designa, segundo Bakhtine, o diálogo entre os textos, no sentido amplo: é “o conjunto social considerado como um conjunto textual”, segundo uma expressão tle Kristeva, A intertextuali- dade está pois calcada naquilo que Bakhtine chama de dialogismo, isto é, as relações que todo enunciado mantém com outros enunciados.
Em Bakhtine, entretanto, a noção de dialogismo continha uma abertura superior sobre o mundo, sobre o "texto” social. Se há dialogismo por toda parte, isto é, uma interação social dos discursos, se o dialogismo é a condição do discurso, Bakhtine distingue gêneros mais ou menos dialógicos. Assim, o romance é o gênero dialógico por excelência — afinidade que nos reconduz, aliás, â ligação privilegiada entre o dialogismo e o realismo — e, no romance (realista), Bakhtine opõe ainda a obra monológica de Tolstoí (menos realista) e a obra polifônica dc Dostoievski (mais realista), pondo em cena uma multiplicidade de vozes e de consciências. Bakhtine encontra nas obras populares e nos ritos carnavalescos medievais, ou ainda em Rabelais, a origem exemplar dessa poligonia do romance moderno. Em geral, ele distingue duas genealogias no romance europeu, uma em que a plurilingüismo permanece
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fora do romnnce e designa, por contraste, sua unidade estilística; outra, em que o plunlingiiismo, de Rabelais a Ceivantes e até Proust ou joyce, está integrado à escritura romanesca.
A obra de Bakhtine, contrapondo-se aos forma listas russos, depois franceses, que fechavam a obra em suas estruturas imanentes, reintroduz a realidade, a história e a sociedade no texto, visto como uma estrutura complexa de vozes, um conflito dinâmico de línguas e de estilos heterogêneos. A intertextualidade calcada no clialogismo bakhtiniano fechou-se, entretanto, sobre o texto, aprisionou-o novamente na sua literariedade essencial. Ela se define, segundo Genette, por "uma relação de co-presença entre dois ou vários textos'*, isto é, o mais das vezes, pela “presença efetiva de um texto num outro".17 Citação, plagio, alusão são suas formas correntes. Desse ponto de vista, mais restrito, negligenciando a produtividade sobre a qual Krisreva, depois de Bakhtine, insistia, a intertextualidade tende às vezes a substituir simplesmente as velhas noções de “Fonte" e de "influência", caras â história literária, para designar as relações entre os textos. Além disso, juntamente com as “fontes literárias”, a história literária reconhecia as "fontes vivas", como um pôr-do-sol ou um luto amoroso, o que mostra que uma mesma noção já recobria as relações da literatura com o mundo e com a literatura, e o que lembra, também, que o ponto de vista da história literária não era unicamente biográfico. Insistindo nas relações entre os textos, a teoria literária teve como conseqüência, talvez inevitável, superestimar as propriedades formais dos texros em detrimento de sua função referencial, e por isso desrealizar o dialogtsmo bakhtininno: a intertextualidade tornou-se logo, muito mais, um dialogismo restrito.
O sistema de Riffaterre é, quanto a isso, exemplar; ele ilustra com perfeição corno o dialogismo de Bakhtine perdeu todo enraizamento no real ao tornar-se intertextualidade. Riffaterre chama de “ilusão referencial", segundo o modelo da "ilusão intencional" Ca intenlioucil faliacy dos New Critics americanos), o erro, comum, em sua opinião, que consiste em substituir a realidade â sua representação, em "colocar a referencialidade no texto, quando ela está, na verdade, no leitor".13 Vítima da ilusão referencial, o leitor acredita que o texto se refere ao mundo, enquanto que os textos literários não falam nunca
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senão de estados de coisas que lhes são exteriores. E os críticos fazem, em geral, a mesma coisa, colocando a referencialidade no texto, enquanto ela é produzida pelo leitor, que racionaliza assim um eFeito do texto. Essa correção repousa no postulado cie uma distinção fundamental entre a linguagem de todos os dias e a literatura. Riffaterre reconhece que, na linguagem cotidiana, as palavras se referem aos objetos, mas acrescenta logo que em literatura nào é assim. Em literatura, a unidade de sentido não seria, pois, a palavra, mas o texto inteiro, e as palavras perderíam suas referências particulares para se relacionarem umas com as outras no contexto e produzir um efeito de sentido chamado significância. Observemos aqui o delizamento: enquanto, para Jnkobson, o contexto estava, na verdade, fora do texto, isto é, no real, e que a função referencial estava precisamente ligada a ele, o contexto não é, em Riffaterre, senão texto (co-texto, se quisermos), e a signifi- cãncia literária se opõe ã significação não literária mais ou menos como Snussure separava o valor (relação entre signos) e a significação (relação entre significante e significado). “O ineertexto", escreve ainda Riffaterre, “é a percepção, pelo leitor, de relações entre uma obra e outras que n precederam ou se lhe segui vam", e essa é a única referência que importa nos textos literários, os quais são auto-suficientes e não falam do mundo, mas de si mesmos e de outros textos. “A inter textual ida de é [...1 o mecanismo próprio para a leitura literária. Somente ela, na verdade, produ2 a significância, enquanto a leitura linear, comum aos textos literário e não literário, não produz senão o sentido."15 Segue-se que a inter- textualidade é a própria literariedade, e que o mundo não existe mais para a literatura. Mas essa definição restrita e purificada da intertextualídade não se basearia ela numa petição de princípio, a saber numa distinção arbitrária e impermeável entre linguagem cotidiana e literatura, entre significação e significância? Voltarei a isso mais adiante.
De Bakhtine a Riffaterre, as injunções da intertexcualidade foram singularmente reduzidas, e a realidade não faz mais parte dela. Genette, em Pcilimpsesles [Palimpsestos] (1982), chama de transtextualidade rodas as relações de um texto com outros textos. À intertextualídade, limitada â presença efetiva de um texto em outro, ele acrescenta para textual idade, metatextualidade, arquitextuaiidade e ainda hipertextualidade,
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estabelecendo uma tipologia complexa da “literatura em segundo grau”. Escapou pela tangente, utilizando a complexidade das relações intertexruais para eliminai- a preocupação com o mundo que estava contida no dialogismo.
OS TERMOS DA DISCUSSÃO
Examinei até aqui as duas teses extremas sobre as relações entre literatura e realidade, Relembro-as, cada uma, por uma Rase: segundo a tradição aristotélica, humanista, clássica, realista, naturalista e mesmo marxista, a literatura tem por finalidade representar a realidade, e ela o faz com certa conveniência; segundo a tradição moderna e a teoria lirerária, a referência é uma ilusão, e a literatura não fala de outra coisa senão de literatura, Mallarmé anunciava: “Falar não diz respeito ã realidade das coisas senão comercialmente: em literatura, comenta-se em fazer-lhe uma alusão ou em distrair sua qualidade que alguma idéia incorporará."20 Em seguida, Blanchot foi mais longe, Como pata a intenção, gostaria agora de tentar sair dessa alternativa traiçoeira, ou da maldição do binurismo que quer forçar-nos a escolher entre duas posições tão insustentáveis uma quanto outra, mostrando que o dilema se baseia numa concepção algo limitada, ou caduca, da referência, e sugerir várias maneiras de reatar o elo entre a literatura e a realidade, Não se trata de afastar as objeções contra a mimèsis, nem de reabilitar esta, pura e simplesmente em nome do senso comum e da intuição, mas de observar como foi possível refundir o conceito de mimèsis depois da teoria.
Procederei em dois tempos. Primeiro, tentarei mostrar a fragilidade, até mesmo a inconsistência e a incoerência da recusa da referência em literatura. Por exemplo, a crítica da ilusão referencial, em Barthes e em Riffaterre, apresenta falhas: um e outro se dão como adversária urna teoria simplista da referência, od boc, inadequada ou caricatural da referência, o que torna mais fácil para eles desvencilhar-se dela e afirmar que a literatura não tem referência na realidade. Eles pedem, como Blanchot antes deles, o impossível (a comunicação angélica), para concluir pela impotência da linguagem e pelo isolamento da literatura. Decepcionados no seu desejo deslocado
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dc certeza, num domínio em que essa é inacessível, preferem um ceticismo raclical a uma probabilidade sensata quanto a relação entre o livro e o mundo. Mencionarei, em seguida, algumas tentativas mais recentes para repensar as relações entre literatura e mundo de maneira mais flexível, nem mimécica nem antimiméticn.
CRÍTICA DA TESE ANTIMÍMÉTICA
Em S/Z, Banhes atacava os fundamentos da mtmèsts literária sob pretexto de que o romance, rnesmo o mais realista, não era executável, que suas instruções não podiam ser seguidas prática e literalmente.21 O argumento já era bastante estranho, uma ve2 que ele voltava a considerar a literatura como um manual de instruções. Basta tentar seguir as instruções que acompanham qualquer aparelho eletrônico — um gravador ou um computador — para perceber que elas não são, em geral, menos impraticáveis que um romance de Balzac, sem que, entretanto, lhes neguemos qualquer relação com a máquina em questão. Para compreender a descrição de um gesto, por exemplo para executar os movimentos detalhados por um manual de ginástica, é preciso, por assim dizer, já ter feito o gesto. Tateamos, procedemos por aproximações sucessivas (irial and arrod, e pouco a pouco o mecanismo funciona, o exercício se revela possível; chega-se, assim, ã realidade do círculo hermenêutico. Para negar o realismo do romance em geral, Barthes deve identificar previnmente o real e o "operável”, imediatamente transponível, por exemplo para o teatro ou para a tela. Em outras palavras, eíe exige demais, pede demais, para constatar, evidentemente, que suas exigências não podem ser satisfeitas, que a literatura não está ã altura.
Em “O Efeito de Real’’ (1968), artigo de grande influência, 'Barthes se volta para um barômetro que aparece na descrição do salão de Mine Aubnin em Uu Coeur Simple [Um Coração Simples], de Flaubert, como uma anotação inútil, um detalhe “supérfluo”, incômodo porque absolutnmente anódino, insignificante, desprovido da menor função do ponto de vista da análise estrutural da narrativa: “Um velho piano suportava,
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sob um barômetro, uma pilha de caixas e pastas." O piano, pensa ele, conota o status burguês, as caixas sugerem a desordem da casa, mas “nenhuma finalidade parece justificar a referência ao barômetro”.-2 Esse signo seria propriamente insignificante para além do seu sentido literal (“um barômetro é um barômetro", como diria Gertrude Stein). Qual é, pois, a significação dessa insignificância?
Os resíduos irredutíveis da análise funcional lêm em comum o fato de denotar o que sc chama habitualmente de "real concreto" (pequenos gestos, utiiudes transitórias, objetos insignificantes, palavras redundantes), A "representação" pura e simples do "real”, a relação nua “do que é" (ou foi) aparece assim como uma resistência ao sentido.13
O objeto insignificante denota o real, como uma fotografia, tal como Barthes devia definir o noema em La Chambre Clctire [A Câmara Clara] (1980): “Isso-foi." O barômetro justifica, dá crédito ao realismo.
Mas, antes de tudo, poder-se-ia talvez contestar que o barômetro seja assim tão insignificante em Um Coração Simples como deseja Barthes, e, logo, uma vez que ele representa segundo Barthes — juntamente com uma pequena porta em Michelet, que ele cita em outro lugar — o exemplo paradigmático do detalhe inútil, contestar ainda que haja, mesmo no romance mais pretensamente realista, elementos que repugnam a esse ponto o sentido, e digam pura e simplesmente: “Sou o real." O barômetro poderia bem indicar uma preocupação com o tempo, não apenas com o tempo que faz hoje, pois um termômetro bastaria para isso, mas com o tempo que fará amanhã, e uma obsessão, pois, particularmente apropriada na Normandta, região conhecida por seu clima instável e sua "propensão à chuva". Em todo caso, um barômetro faz mais sentido na Normandia do que na Provence: talvez ele fosse gratuito em Daudet ou Pagnol, mas provavelmente não em Flaubert. No Em Busca do Tempo Perdido, o pai do herói é fartamente caracterizado, e também ridicularizado, pelo ritual que consiste em consultar muito regularmente o barômetro. Esta é a primeira ocorrência dessa mania em “Du Côté de Chez Swann" [No Caminho de Swann]:
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Meu pai levantava os ombros e examinava o barômetro, porque amava a meteorologia, enquanto minha mãe, evitando fazer barulho para não perturbá-lo, olhava-o com um respeito enternecido, mas não fixamente demais, para nfin desvendar o mistério de suas superioridades.^
E ele se veste para o inverno, pois há poucas passagens tão maldosas em Em Busca do Tempo Perdido: as relações entre pai e filho são representadas e resumidas por esse barômetro.
Barthes, entretanto, exige que haja no romance notações que não remetam a nada senão ao real, como se por elas o real irrompesse no romance. Essa chave é oferecida em conclusão ao seu artigo;
Semiótica mente, o “detalhe concreto" é constituído da cumplicidade direta de uni referente com um significanle; o significado ê expulso do signo, e, com ele, é claro, a possibilidade de desenvolvei' uma forma do significado (...) il a isso que se pode cha mar dc ilusão referenciai. A verdade dessa ilusão é a seguinte: suprimida a enunciação realista a título de significado de denotação, o "real" volta a título de significado de conotação; pois exaiameme no momento em que esses detalhes parecem denotar diretamente o real, não fazem outra coisa, embora não o digam, que significá-lo: o barômetro de Flaubert, a pequena porta de Michelet não dizem finalmente senão que 11 somos o realé a categoria do "real" Ce não seus conteúdos contingentes) que é então significada; em outras palavras, a própria carência do significado em proveito unicamente do referente torna-se o próprio signifiesnte do realismo: produz-se um efeito dc real.2''
A passagem é bastante teatral, mas não límpida. O barômetro, longe de representar fie!mente a vida de província da Normandia, em pleno século XIX, age como um signo convencional e arbitrário, uma piscadela conivente, lembrando ao leitor que ele se encontra diante de uma obra pretensamente realista: o barômetro não denota nada de importante; ele conota, pois, o realismo enquanto tal. Sem dúvida a posição de Barthes é sempre a mesma; o realismo não é nunca senão um código de significação que procura fazer-se passar por natural, pontuando a narrativa de elementos que aparentemente lhe escapam: insignificantes, eles ocultam a onipresença do código, enganam o leitor sobre a autoridade do texto mimético, ou pedem sua cumplicidade para a figuração
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do mundo. A ilusão referencial, dissimulando a convenção e o arbitrário, é ainda um caso dc naturalização do signo. Pois o referente nfio tem realidade, ele é produzido pela linguagem e nào cindo antes da linguagem etc.
Christopher Prendergast, numa interessante obra sobre a mimèse (The Order of Mim es is (A Ordem da Mimese], 19S6) assinala, entretanto, as aporias desse ntaque banhesiano contra a mimèse. Em primeiro lugar, Banhes nega que a linguagem em geral tenha uma relação referencial com o mundo. Mas se o que ete diz é verdadeiro, se ele pode denunciar a ilusão referencial, se pode, pois, enunciar a verdade da ilusão referencial é que, então, apesar de tudo, há uma maneira de falar da realidade e de se referir a alguma coisa que existe, o que significa que nem sempre a linguagem é completamente inadequada.'6 Não é fácil eliminar totalmente a referência, pois ela intervém exatamente no momento em que é negada, como a própria condição dessa negação. Quem diz ilusão diz realidade, em nome da qual se denuncia essa ilusão. Nesse jogo gira-se no mesmo lugar. É por isso que Montaigne, confrontando-se ao mesmo problema do ceticismo integral, isto é, ao da fratura entre a linguagem e o ser, contentava-se com uma questão que interrompia o giro mecânico: “O que sei eu?”, isto é, eu só sei que não sei verdadeiramente. Mas Barthes queria mais, queria que eu não soubesse nada.
Em suma, a explicação de Barthes sobre o funcionamento desses elementos Insignificantes é, em si mesma, muito curiosa. Prendergast assinala que a dramatização retórica a que se entrega Barthes, recorrendo a metáforas (cumplicidade do signo com o referente, expulsão do significado) e a personificações (“somos o real'') leva o leitor a aceitar unia teoria da referência das mais sumárias e exageradas. A personificação é flagrante: a linguagem é personificada para negar que ela mesma seja linguagem. Graças a essas figuras, Barthes ilustra uma espécie de prestidigitação pela qual as palavras desaparecem, dando ao leitor a ilusão de que ele não está diante da linguagem, mas da própria realidade (“somos o real’’). O signo se apaga diante (ou atrás) do referente para criar o efeito de real: a ilusão da presença do objeto. O leitor acredita que está lidando com as próprias coisas: vítima da ilusão, ele está como que encantado ou alucinado.27
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Assim, Barthes, para afirmar que a linguagem não é referencia! e o romance não é realista, defende uma teoria da referência há muito desacreditada, supondo que pela cumplicidade do signo com o referente, a expulsão da significação, havería uma passagem direta, imediata, do significante ao referente, sem a mediação da significação, isto é, que se alucina o objeto. O efeito de real, a ilusão referencial, seria uma alucinação. Barthes nos solicita a pensar que é isso que deveria acontecer com o leitor do romance realista, se esse romance fosse nutenticaménte realista, c que é essa innutenticidade que os detalhes insignificantes camuflariam. Avaliadas segundo essa exigência, nenhuma linguagem é referencial, nenhuma literatura é mim ética, a menos que Barthes queira dar como modelos de leitor Dom Quixote e Madame Bovnry, vítimas cio poder alucinatório da literatura. Mas Coleridge tinha o cuidado de distinguir a ilusão poética (wilting suspension of disbelief) da alucinação (delttsion), e qualificava-a de “fé negatiua, aquilo que permite simplesmente às imagens apresentadas agir por sua própria força, sem denegação nem afirmação de sua existência real pelo julgamento."20 A seu ver, a “suspensão da incredulidade" não era de modo algum uma fé positiva, e a idéia de uma verdadeira alucinação, observava, deveria chocar-se com o sentido que todo espírito bem formado atribui ã ficção e à imitação.
A crítica de Prendergast pode parecer exagerada, mas não é o único lugar, longe disso, em que Barthes recorre a alucinação como modelo da referência n fim de desacreditar esta última. Em S/Z, Barthes media o realismo pelo operável, pela transpo- nibílidade sem interferência no real. O romance verdadeiramente realista seria aquele que se passasse tal qual numa tela; seria a hipótese generalizada: eu veria como se estivesse lá. Em La Chambre Claire[A Cântara Clara], o célebre punctiun também se relaciona com a alucinação, e Barthes, aliás, o compara â experiência de Ombredane, quando negros da África, que vêent pela primeira vez de suas vidas um pequeno filme, que se propõe ensinar-lhes a higiene cotidiana, numa'tela armada em algum lugar da floresta, ficam fascinados por um detalhe insignificante, “a galinha minúscula que atravessa um canto da praça do vilarejo1',29 a ponto de perder o fio da mensagem, A experiência à qual Barthes mede o malogro da linguagem
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é, em resumo, a da primeira representação. Tal é a história, cara a Barthes, do bombeiro de Filadélfia, encarregado da vigilância do teatro onde, por infelicidade, ele jamais entrara antes de ser ali locado: no momento em que a heroína é ameaçada por um vilão, ele aponta a arma para este — os bombeiros de Filadélfia eram possivelmente armados, nessa época — aciona o gatilho e abate o ator, depois do que a representação foi interrompida. Na experiência de Ombredane, como na história do bombeiro da Filadélfia, estamos diante do caso extremo de indivíduos para os quais ficção e realidade são uma coisa só, porque não foram iniciados ã imagem, ao signo, ã representação, no mundo da ficção. Mas basta ler dois romances, ver dois filmes, ir duas vezes ao teatro, para não sermos mais vítimas da alucinação, tal como Barthes a descreve com a finalidade de desmascarar a ilusão referencial. Barthes limita-se a uma teoria da referência simplificada e excessiva demais para provar seu malogro. H fácil demais ter como pretexto o fato de que, quando falamos das coisas, não as vemos, não as imaginamos, não as alucinamos, para de negar toda função referencial n linguagem, e toda realidade dos objetos de percepção fora do sistema semiótico que os produz. No seu comentário muito conhecido sobre o fort-cia, em Att-déla du Príncipe de Plaisir [Além do Princípio de Prazer], Freud mostrava como uma criança de dezoito meses, cuja mãe se afastara, dominava essa ausência brincando com um carretei que ela fazia desaparecer e voltar a sua vontade, por cima da borda do seu berço, emitindo sons semelhantes a fort (“sumiu") e da ("voltou"), mostrando assim uma experiência precoce do signo como aquilo que ocupa o lugar da coisa em sua ausência, e, de modo algum como fantasma da coisa.íü É, entretanto, a um estágio anterior ao forl-da, retomado por Lacan para definir o acesso ao simbólico,que Barthes gostaria de reconduzir-nos para negar que a linguagem e a literatura tenham qualquer relação com a realidade.
A ilusão referencial, tal como RiFfaterre a define, escapa ao paradoxo mais gritante do efeito de real segundo Barthes. Para Barthes, na verdade, é toda a linguagem que não é referencial. Riffaterre, em compensação, tem o cuidado de distinguir o uso comum da língua de seu uso poético:
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N;i lingiKigtím cotidiana, as palavras parecem ligadas verticalmente, cada uma à realidade qne pretende representar, cada uma colada a seu conteúdo como uma etiqueta sobre um frasco, formando cada uma delas uma unidade semântica distinta. Mas em literatura a unidade de significação é o próprio texto.i2
Em resumo, na linguagem cotidiana a significação seria vertical, mas seria horizontal em literatura. E a referência funcionaria adequadamente na linguagem cotidiana, enquanto a signifi- câncici seria específica da linguagem literária. Notaremos, entretanto, que para manter a referência na linguagem, mas subtraí-la da literatura, Riffaterre remete, também ele, a uma teoria da referência há muito em desuso, em todo caso pré- saussuriana ou acl boct fazendo da linguagem um sistema de etiquetas sobre fiascos, ou uma nomenclatura: é a filosofia da linguagem do Père Castor, nome desses álbuns em que inúmeras crianças aprenderam a ler e onde, abaixo do desenho de um ferro de passar roupa, estão escritas as palavras “ferro de passar roupa"; mas não é segundo esse modelo que a língua c a referência funcionam. Entretanto, essa divertida teoria da referência — etiquetas sobre frascos — nem mesmo elimina a dificuldade, pois a aporia, dessa vez, é a da própria literariedade: com efeito, como distinguir a linguagem poética, dotada de significância, da linguagem cotidiana, no seu aspecto referencial? Chegamos assim à petição de princípio, pois não há outro critério de oposição entre linguagem cotidiana e linguagem poética senão, precisamente, o postulado da não-referencialidade da literatura. A linguagem poética é significante porque a literatura não é referencial e vice-versa. Donde a conclusão um tanto dogmática e circular a que chega Riffaterre: "A refcrencialidnde efetiva não é nunca pertinente à significância poética.Circular, porque a significância poética Toi, ela mesma, definida por seu antagonismo com a referencialidade. E, entretanto, graças a esse raciocínio que Riffaterre pode pretender que a mimèsís não é nunca senão a ilusão produzida pela significância: “O texto poético é auto- suficienre: se há referência externa, não é ao real — muito ao contrário. Só há referência externa a outros textos." Como para Barthes, o mundo dos livros se substitui inteiramente ao livro do mundo, mas por um fiat.
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O ARBITRÁRIO DA LÍNGUA
A denegação da faculdade referencial da literatura, em Banhes e na teoria literária francesa em geral, deve-se ã influência de uma cerra linguística, a de Saussure e de Jakobson, ou melhor, de uma certa interpretação dessa linguística. Antes de repensar de maneira menos maniqueísta a relação entre literatura e realidade, é preciso verificar se essa linguística implicava necessariamente a negação da referência, Um curioso paradoxo resulta, em todo caso, da coincidência dessa de negação e dessa influência: a denegação da referência orientou, na verdade, a teoria literária para a elaboração mais de uma sintaxe do que de uma semântica da literatura, enquanto Saussure e Jakobson não eram, nem um nem outro, síncati- cistas; e a influência de Saussure e de Jakobson levou a teoria a ignorar os trabalhas maiores da sintaxe contemporânea, sobretudo os cia gramática gerativa de Noam Chomsky, ao mesmo tempo em que ela se decidia pela constituição de uma sintaxe da literatura.
A insistência na função poética da linguagem, em detrimento de sua função referencial, resulta de uma leitura restritiva de jakobson, enquanto a afirmação do convencionalismo dos códigos literários, segundo o modelo da língua — tido como arbitrário, obrigatório e inconsciente — é originário da teoria do signo lingüístico de Saussure. Entretanto, nem a exclusão da função referencial era fiel a Jakobson, que não pensava em termos de exclusão nem de alternativa, mas de coexistência e de dominante, nem a afirmação da arbitrariedade da língua, no sentido de secundariedade ou mesmo de impossibilidade da referência, era exatamente conforme o texto de Saussure. Em outros termos, o Co»rs cie Lingitisticjue Gõnémie [Curso de Linguística Geral] não justifica a premissa segundo a qual a linguagem não fala do mundo. É importante relembrar isso para rearar os elos entre a literatura e o real.
Segundo Saussure, em realidade, não é a língua que é arbitrária, mas, mais exatamente e topicamente, a ligação do aspecto fonético e do aspecto semântico do signo, do stgnifi- cante e do significado, no sentido de obrigatório e inconsciente. Não havia, aliás, nada de muito novo nesse convencionalismo lingüístico, lugar-comum da filosofia da linguagem desde
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Aristóteles, mesmo quando Saussure coloca o arbitrário predsumente entre o som e o conceito, e não mais, como se fazia tradicionalmente, entre o signo e a coisa. Por outro lado, Saussure fazia um relacionamento, que também não era verdndeirameme original, mas herdado do romantismo, e, entretanto, fundamental para a teoria estrutural e pós-estrutural, entre a língua como sistema de signos arbitrários e a língua como visão de mundo de uma comunidade lingüística. Assim, é segundo o modelo do convencionalismo linguístico, afetando a ligação entre o som e o conceito, ou entre o signo e o referente, que todo o conteúdo semântico da própria língua foi geralmente percebido, como se constituísse um sistema independente do real ou do mundo empírico: a implicação abusiva tirada de Saussure é, segundo Pavel, que “essa rede formal [a língua] é projetada sobre o universo que ela organiza segundo um esquema linguístico a p rio ri ",34 Há aí uma inferência não necessária e que pode ser refutada: o arbitrário do signo não implica, segundo coda lógica, a não- referencinlidade irremediável da língua.
Desse ponto de vista, o capítulo essencial do Curso de Linguística Geral é o que trata do valor (II, ÍV). Enquanto a significação, diz Saussure, é a relação do significante e do significado, o valor resulta da relação dos signos entre si, ou “da situação recíproca das peças da língua". Nomear é isolar num continuum: o recorte em signos discretos de uma matéria contínua é arbitrário, no sentido de que uma outra divisão podería ser produzida numa outra língua, mas isso não quer dizer que esse recorte não fale do continuum. Línguas diferentes nunnçam diferentemente as cores, rnas é sempre o mesmo arco-íris que todas recortam. Ora, para compreender o destino do valor na teoria literária, basta lembrar como Barlhes resumia essa noção em seus "Eléments de Sémiologie" [Elementos de Semiologia], em 1964. Ele lembrava, em primeiro lugar, a analogia proposta por Saussure entre a língua e uma folha de papel: recortando-a, obtém-se diversos pedaços tendo cada um deles um reverso e um verso ( é a significação), e cada um apresenta um certo recorte em relação a seus vizinhos (é o valor). Essa imagem, continua Barthes, leva a conceber a “produção do sentido", isto c, a palavra, o discurso, a enun- ciaçào, e não mais a língua,
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como um aío cta recorte simultâneo de cluas massas amorfas, de dois “reinos flutua mus", como diz Saussure; Saussure imagina, com efeito, que na origem (teórica) do sentido, as idéias e os sons formam duas massas flutuantes, mutáveis, contínuas e paralelas, de substâncias; o sentido intervém quando se recoria ao mesmo tempo, de uma só vez, essas duas massas.*'
A origem saussuriana cias línguas, ainda que inteiramente teórica, teve, como todo mito da origem e em particular das línguas, uma incidência considerável; ela permitiu a Barthes passar rapidamente da noção tradicional e local do arbitrário do signo — no sentido de imotivado e necessário — àquela, não necessariamente implicada, do arbitrário não apenas da língua como sistema, mas também de toda “produção de sentido", da palavra em sua relação com o real, ou melhor, na sua ausência cie relação com o real. Evidentemente, Saussure nunca sugeriu que a palavra fosse arbitrária. Mas Barthes tranquilamente passa de um convencionalismo restrito, relacionado com a natureza arbitrária do signo linguístico, para um convencionalismo generalizado, relacionado com o irrea- lismo da língua e mesmo da palavra, um convencionalismo tão absoluto que as noções de adequação e de verdade perdem toda pertinência. Em resumo, uma vez que todos os códigos são convenções, os discursos não são nem mais nem menos adequados, mas todos igual mente arbitrários. A linguagem, recortando arbirrnrinmenfe, ao mesmo tempo, o signifiennte e o significado, constitui uma visão de mundo, isto é, um recorte do qual somos irremediavelmente prisioneiros. Barthes projeta sobre o Curso de Saussure a hipótese de Sapir-Whorf (do nome dos antropólogos Edward Sapir e Banjamin Lee Whorf) sobre a linguagem, segundo a qual os quadros linguísticos constituem a visão de mundo dos locutores, o que tem como consequência última tornar as teorias científicas incomensuráveis, intraduzíveis e todas igualmente válidas. Recaímos, por esse caminho, na hermenêutica pós-heideggeriana, com a qual concorda essa concepção da linguagem: a linguagem é sem saída para o outro, logo, para o real, assim como nossa situação histórica que limita nosso horizonte.
Ora, há um salto imenso, segundo o qual a premissa “Não há pensamento sem linguagem" leva ao arbitrário do discurso, não mais no sentido do convencionalismo do signo, mas do
despotismo de todo código, como se da renúncia â dualidade do pensamento e da linguagem resultasse infalivelmente a não-referencialidade da palavra. Mas não é porque as línguas não enxergam iguaímente as cores do arco-íris que elas não falam do mesmo arco-íris. O peso das palavras certamente contou nesse deslizamento abusivo para o sentido de arbitrário: elo imorivado e necessário entre significante e significado, tal como Benveniste, em “Nature du Signe I.inguistique" [Natureza do Signo Linguístico] (1939), afirmava ser preciso entendê-lo em Saussure; arbitrário, repetimos, fot compreendido por Barthes e seus sucessores como o poder absoluto e tirânico do código. Uma vez mais é útil lembrar aqui a afinidade entre a teoria literária e a crítica da ideologia. É a ideologia que é arbitrária no segundo sentido, isto é, ela constitui um discurso ofuscante ou alienante sobre a realidade, mas a língua não pode ser puramente e simplesmente assimilada à ideologia, porque é ela também que permite desmascarar o arbitrário. Valor, representação, código são igual mente termos ambíguos, conduzindo a uma visão totalitária da língua: esta é, ao mesmo tempo, coibida peta imotivação do signo estendida à inadequação da língua, e coercitiva, porque essa inadequação é concebida como um despotismo. A tirania da língua tornou-se assim um lugar-comum, ilustrado pelo título do livro de introdução ao formalismo e ao estrutura- lismo, do crítico americano Frederic Jameson: The Prtson- House of Language [O Cárcere da Linguagem] (1972), ou a linguagem como prisão. Nessa direção, Barthes viria a proferir em 1977, por ocasião de sua aula inaugural no Collège de France, proposições chocantes sobre o “fascismo” da língua:
A linguagem é uma legislação, a língua o seu código. Não percebemos o poder que há na língua, porque nos esquecemos que ioda língua é uma classificação, e que toda classificação é opressiva. 1...] Falar, e com muito mais razão, discorrer, não é comunicar, como se afirma lão frequentemente, é sujeitar.
O jogo sofistico de palavras entre código e legislqção é aqui flagrante, conduzindo a assimilação da língua a uma visão de mundo, em seguida a uma ideologia repressiva ou a uma minwsis coercitiva. A época não era mais a das Mythoiogies nem da semiologia: distanciando-se da comunicação e da
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significação ("comunicar’'), Barthes parece doravante colocar em primeiro plano uma função da linguagem que lembra sua força ilocurória ("sujeitar"), ou os atos de linguagem analisados pela pragmática, mas com uma inflexão ditatorial. Nesse sentido, falar concerne ao real, ao outro, mas mesmo assim a língua é profundamettte não realista.
Trata-se menos de refutar essa visão trágica da língua, que de observar que passamos, com a teoria literária — ou melhor: a teoria literária é essa própria passagem —, de uma total ausência de problcmatização da língua literária, de uma confiança inocente, instrumental — dissimulando, se quisermos, seguramente, interesses objetivos, como se clizia numa certa época — na representação do real e na intuição do sentido, a uma suspeiçào absoluta da língua e do discurso, a ponto de excluir toda representação. No fundamento dessa passagem encontramos ainda Saussure, isto é, a dorninãncia cio bina- rismo, de um pensamento dicotômico e mnniqueísta, tudo ou nada, ou a língua é transparente ou a língua é despótica, ou ela é inteiramente boa ou ela é inteíramente má. "As coisas não significam mais ou menos, elas significam ou não significam", decretava Barthes na época de Sobre Racine,11 confundindo linguagem e tragédia: “A divisão raciniana é rigorosa mente binária, o possível não é nunca outra coisa senão o contrário.”38 Assím como a cisão trágica, segundo Barthes, a língua e a literatura não são do domínio do mais ou menos, mas cio tudo ou nada: um código não é mais ou menos referencial, o romance realista não é mais realista que o romance pastoral, assim como diferentes perspectivas, em pintura, por serem elas também convenções, não são mais ou menos naturais.
Como sempre reinou nessa discussão, pelo menos desde o artigo inaugural de Jakobson, "Du rcalisme en art” (Do Realismo em Aite] (1921), uma certa confusão entre a referência n:i língua e a escola realista em literatura, identificada ao romance burguês, não é possível ignorar o contexto histórico no qual a tese da arbitrariedade da língua foi recebida. Assim, reintroduzir a realidade em literatura é, uma vez mais, sair da lógica binária, violenta, clisjunliva, onde se fecham os literatos — ou a literatura fala do mundo, ou então a literatura fala da literatura —, e voltar ao regime do mais ou menos, da ponderação, do aproximadamente; o fato de a literatura falar da literatura não impede que ela fale também do mundo. Afinal de contas, se o ser
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humano desenvolveu suas faculdades de linguagem, é para tratar de coisas que não são da ordem da linguagem.
A MIMÈSIS COMO RECONHECIMENTO
Os partidários da mimèsis, apoiando-se tradicionalmenie na Poética de Aristóteles, diziam que a literatura imitava o mundo; os adversários d a mimèsis (em geral os teóricos modernos da poesia), vendo, sobretudo na Poética uma técnica de representação, retrucavam que ela não possuía uma exienori- dade e apenas fazia pastiche da literatura. Renegando ambas, a reabilitação da mimèsis, empreendida nas duas últimas décadas, passa por uma terceira leitura da Poética. Não voltaremos ao questionamento, efetuado pelos teóricos modernos da poesia, do modelo visual ou piclural imposto, ames mesmo de Aristóteles, pela utilização platônica da palavra que permaneceu implícita apesar da inclusão aristotélica da cliègesis na mimèsis. Em compensação, observaremos que, cliferentemente de Platão, que aí via uma cópia da cópia, logo, uma degradação da verdade, a mimèsis não era passiva, mas ativa. Segundo a definição do início do Capítulo IV da Poética, a mimèsis constituía uma aprendizagem:
Descfc a infância, os homens têm, inscrita em sua natureza, I..J unia tendência à inimaistbai [imitar ou represe ma r| — e o homem se distingue dos outros animais porque é nauiralnieme inclinado à mimeistbai [imitar ou representar! e recorre à mimèsis em seus primeiros aprendizados. (1448b 6)s
A mimèsis é, pois, conhecimento, e não cópia ou réplica idênticas: designa um conhecimento próprio ao homem, a maneira pela qual ele constrói, habita o mundo. Reavaliar a mimèsis, apesar do opróbio que n teoria literária lançou sobre ela, exige primeiro que se acentue seu compromisso com o conhecimento, e daí com o mundo e a realidade. Doís autores desenvolveram particular mente esse argumento.
Northrop Frye, em sua Anatonüe cie ia Critique ÍAnatomin da Crítica] (1957), já insistia em três noções da Poética, frequentemente negligenciadas, para liberar a mimèsis do moclelo visual da cópia: malhos (a história ou a intriga),
d ia? w ia Co pensamento, a intenção ou o tema), e anagnôrisis (o reconhecimento). Aristóteles definia o mutbos como “o sistema dos fatos” ou "o ngenciamento dos fatos em si5tema."(l450n 4 e 15). O mutbosê a composição dos acontecimentos numa intriga linear ou numa seqüência temporal. Frye direcionava a poética para uma antropologia, inferindo que a finalidade da mimèsis não era, em absoluto, copiar, mas estabelecer relações entre fatos que, sem esse ngencia- mento, surgiríam como puramente aleatórios; desvendar uma estrutura de inteligibilidade dos acontecimentos e daí atribuir um sentido às ações humanas. Quanto à dianoia, “são as formas pelas quais se demonstra que alguma coisa é ou não é" (1450b 12): é, em suma, a intenção principal, no sentido que eu dava anteriormente a essa expressão, referindo-me a Austin, c a interpretação, proposta ao leitor ou ao espectador que conceitualiza a história, passa da sequência temporal dos Fatos ao sentido ou ao tema como unidade da história. Frye, seguindo os antropólogos, e contrariamente aos futuros narra- tólogos franceses, dava prioridade ã ordem semântica, e mesmo simbólica, em relação ã estrutura linear da intriga. Enfim a anagnôrisis, ou reconhecimento, é, na tragédia, “a reviravolta que faz passar da ignorância ao conhecimento11 (1452a 29), à consciência da situação, peto herói; e a mais bela, segundo Aristóteles, é a de Édípo, compreendendo que matara o pai e desejara n mãe. Segundo Frye, o reconhecimento era um dado fundamental da intriga: “Na tragédia, a cognitio é normalmente o reconhecimento do caráter inevitável de uma sequência causai encadeada no tempo.”30 Mas por extensão ou mudança de nível do conceito, Frye passava sub-repticiamente do reconhecimento pelo herói, no interior da intriga, a um outro reconhecimento, exterior ã intriga, ligado à sua recepção pelo espectador ou leitor: “Parece que a tragédia chega até a um Augenblick, ou momento crucial, a partir do qual o caminho em direção ao que podería ter sido e o caminho em direção ao que vai ser serão vistos simultaneamente. Vistos, ao menos, pelo público.”'10 Atribuindo uma função de reconhecimento no espectador ou ao leitor, Frye pode sustentar que a anagnôrisis e, logo, a mimèsis, produzem um efeito fora da ficção, isto é, no mundo. O reconhecimento transforma o movimento linear e temporal da leitura na apreensão de uma forma uníficnnte e de uma significação simultânea. Da intriga (umtbos), ele faz passar ao tema e à interpretação (.dianoia):
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Quando o leitor de uni romance se pergunta: “O que vai acontecer nessa história?", sua questão se volta para o desenrolar da intriga, e, especialmeme, para este aspecto cruciai da intriga que Aristóteles chama de reconhecimento ou ctnagnôrisis. Mas ele pode tgunlmente se perguntar: "O que significa esta história?’1. Essa questão diz respeito a diemoia e indica que há elementos de reconhecimento nos temas tanto quanto nas intrigas.^
Em outras palavras, ao Indo do reconhecimento feito pelo herói na intriga, um outro reconhecimento intervém — ou o mesmo — o cio tema. pelo leitor na recepção cia intriga. O leitor se apropria da anognôrisis como reconhecimento da forma total e da coerência temática. O momento do reconhecimento é, pois, para o leitor ou o espectador, aquele no qual o projeto inteligível da história é apreendido retrospectivamente, aquele no qual a relação entre o início e o fim torna-se manifesta, precisarnente quando o mutbos torna-se dianoia, forma unificante, verdade geral. O reconhecimenro pelo leitor, para além da percepção da estrutura, está subordinado á reorganização desta ultima a fim de produzir uma coerência temática e interpretativa. Mas o preço dessa reintepretaçào eficaz da Poética foi o deslocamento do reconhecimento, do interior para o exterior dn ficção.
Paul Ricoeur, na sua grande trilogia Tentps et Récit [Tempo e Narrativa] (1983-1985), insiste igualmente na aliança da mimèsis com o mundo, e na sua inscrição no tempo. A teoria literária associava a mimèsis à doxa, a um saber inerte, passivo, repressivo, ao consenso e ã ideologia, até mesmo ao fascismo. Quanto a Ricoeur, ele traduz mimèsis por “atividade mimética", e a identifica aproximadamente ao mutbos, traduzido por “produção da intriga1’, e inseparável de uma experiência temporal, mesmo que Aristóteles silencie sobre essa relação. Mimèsis o. mutbos são operações e não estruturas, pois a poética é a arte de “compor as intrigas" (1447a 2). Aristóteles descreve “o processo ativo de imitar ou de representar’’/2 expressão na qual, segundo Ricoeur, a imitação ou n representação de ações (mimèsis) e o agenciamento dos fatos (mutbos) são quase sinônimos: “É a intriga que é a representação da ação.-' (1450a 1) A mimèsis, como produção da intriga, é um “modelo de consonância”, um “paradigma de ordem”; completude, totalidade, extensão apropriada são seus traços, segundo Aristóteles, que afirma que “um todo é aquilo que tem um começo, um meio
e um fim" (1 50b 26), definidos pela composição poética. A intriga é linear, mas seu vínculo interno é lógico mais que : cronológico, ou ainda, da sucessão dos acontecimentos a intriga faz uma inteligibilidade. É por isso que Ricoeur insiste na inteligência mimética e mítica que, como em Frye, é reconhecimento, um reconhecimento que sai do quadro da intriga para tornar-se o do espectador, o qual aprende, conclui, reconhece . a forma inteligível da Intriga. A mimèsis visa no muthos não seu caráter de fábula, mas seu caráter de coerência. "Compor a intriga já é fazer surgir o inteligível do acidental, o universal do singular, o necessário ou o verossímil do episódico."tJ
Assim, a mimèsis, imitação ou representação de ações . (mtnwsis praxeos), mas também agenciamento dos fatos, é exatamente o contrário do "decalque do real preexistente”; ela é “imitação criadora”. Não "duplicação da presença", “mas incisão que abre o espaço da ficção; ela instaura a literariedade da obra literária":^ "o artesão das palavras não produz coisas, apenas cjuase-coisas, inventa o como-se". Entretanto, depois ■ de ter insistido sobre a mimèsis como incisão, Ricoeur gostaria . que ela fosse também ligação com o mundo. Ele distingue, 1 pois, na mimèsis-criação, que ele chama de mimèsis TI, um : alto e um baixo: de um lado, uma referência ao real, de outro, ■ a percepção do espectador ou do leitor, por mais esparsos ; que esses aspectos se apresentem ira Poética, Em torno da , mimèsis como configuração poética e como função de mediação, ■ o real permanece presente nos dois aspectos. For exemplo, quando Aristóteles opõe a tragédia e a comédia, sendo que “uma quer representar personagens piores, n outra personagens melhores que os homens atuais" (l44Sa 16-1S), o critério que permite discriminar o alto e o baixo é aquilo que é atual, logo, aquilo que é:
Para que se possa falar de "deslocamento mimético", dê "transposição'1 quase metafórica da ética à poética, é preciso conceber a atividade mímélica como ligação e não apenas como corte. Ela é o próprio movimento da mimèsis í à mimèsis II. Se é certo que o termo mutbos marca a descontinuidade, a própria palavra praxis, por sua dupla fidelidade, assegura a continuidade entre os dois regimes, ético e poético, da ação.4'
Quanto ao baixo da mimèsis, sua recepção, certamente cie não é uma categoria maior na Poética, mas alguns índices
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mostram que ele não é completamenle ignorado, como quando /CAristóteles identifica aproximadamente o verossímil e o 1'- persuasivo, isto é, considera o verossímil do ponto de vista ' " do seu efeito. É por isso que, segundo Ricoeur, “a poética .'moderna reduz depressa demais [a mimèsis] a uma sijnples disjunção, em nome de unia pretensa interdição lançada pela semiótica sobre tudo o que é considerado como extra linguístico".'16 i/X mimèsis como atividade criadora, como incisão, se insere v£'.’èntre a pré-compreensão cia mimèsis X e a recepção da obra v;rí;./da mimèsis II; “A configuração textual opera uma mediação entre a prefiguração do campo prático e sua refiguração pela ... .Trecepção da obra."'17
O aprendizado mimético está, pois, ligado ao reconheci-
: v mento que é construído na obra e experimentado pelo leitor.
;,?A narrativa, segundo Ricoeur, é nossa maneira de viver no
T mundo —, representa nosso conhecimento prático do mundo
;'je envolve um trabalho comunitário de construção de um mundo
^inteligível. A produção da intriga, ficcional ou histórica, é a
.. própria forma do conhecimento humano distinto do conheci- ., . , . .... mento logico-matematico, mais mtuitivo, mais presunçoso,
mais conjeturnl. Ora, esse conhecimento está relacionado ao
tempo, porque a narrativa dá forma ã sucessão informe e
silenciosa dos acontecimentos, estabelece relações entre os
ÍTT inícios e os fins (pode-se lembrar aqui, por contraste, o ódio
’ de Banhes pela última palavra). Do tempo, a narrativa faz
temporalídade, isto é, essa estrutura da existência que advém à
linguagem na narrativa; e não há outro caminho em direção
ao mundo, outro acesso ao referente senão comando histórias:
“O tempo torna-se humano na medida em que é articulado a
um modo narrativo, e a narrativa aringe sua significação plena
quando se toma uma condição da existência temporal."'”1 Assim,
novamente, a mimèsis nào é apresentada como cópia estática,
ou como quadro, mas como atividade cognitiva, configurada
como experiência do tempo, configuração, síntese, praxis
dinâmica que, ao invés de imitar, produz o que ela representa,
amplia o senso comum e termina no reconhecimento.
Tanto em Ricoeur como em Frye, a mimèsis produz totali- dades significantes a partir c!e acontecimentos dispersos. É pois pelo seu valor cognitivo, público e comunitário que ela é reabilitada, contra o ceticismo e o solipsismo aos quais conduzia a teoria literária francesa estmturalisla e pós-estruruialista. Aí
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também, as escolhas críticas devem ser postas em relaçao com valores extraliterãrios (exitenciais, éticos) e com um momento histórico, Mas a ecletismo de Frye e o ecumenismo de Ricoeur conduzem n sínteses ns vezes frouxas, ou, pelo menos, muito flexíveis, dn poética e da ética, sobretudo na identificação furtiva do reconhecimento na intriga e fora da intriga.
Evitando esse caminho, sublinhando a importância primordial da anagnôrisis na Poética, Terence Cave escreveu sobre essa noçno um livro tão rico quanto a Mimèsis de Auerbnch CRecogniiions: A Stiuly in Poelics [Reconhecimentos: um Esrudo sobre Poética], 1988). O valor heurístico da mimèsis é ainda aí acentuado, mas sem confusão entre o reconhecimento interno e o reconhecimento externo. Aristóteles insiste nesse valor heurístico no Capítulo IV, sem referência â anagnôrisis, mas o que ele chama de "ação com reconhecimento" (Cap. X), ao término da qual o herói, como Édipo, descobre sua identidade, não é menos um paradigma da definição de identidade no sentido filosófico: ‘‘Adequadamente construído, o mi(tbos trágico imita urna ordem inteligível, e a anagnôrisis parece então destinada a se tornar o critério da inteligibilidade.**49 A mimèsis se encontra, pois, perfeitamente desvencilhada do modelo píctural, mas, dessa vez, incorporada ao paradigma cínegético, que Cave toma emprestado ao historicista Cario Ginzburg e que faz do leitor um detetive, um caçador ã procura de indícios que lhe permitirão dar um sentido à história. O signo de reconhecimento na ficção remete ao mesmo modo de conhecimento que a pegada, o indício, a marca, a assinatura e todos os demais signos que permitem identificar um indivíduo ou reconstruir um acontecimento. Segundo Ginzburg, o modelo desse tipo de conhecimento, em oposição à dedução, é a arte do caçador que decifra a narrativa da passagem de um animal pelas pegadas que ele deixou. Esse reconhecimento sequencial conduz a uma identificação baseada em indícios tênues e marginais. Ao lado da caça, o reconhecimento tem também um modelo sagrado, o da adivinhação, como construção do futuro e não mais reconstrução do passado. O caçador e o adivinho, por seus procedimentos, distinguem-se do lógico e do matemático, e sua inteligência prática das coisas se aproxima da mèlis grega, encarnada em Ulisses, como indução fundamentada em detalhes significanres que se revelam à margem da percepção: a arte do detetive, do especialista (o
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crítico especializado ao estudo da autenticidade em história da arte), do psicanalista pertence no paradigma cinegético.
Talvez a própria idéia de narração — observava Ginzburg — (...| tenha surgido, pela primeira vez, numa sociedade de caçadores, cia experiência do deciframento de indícios mínimos. (...] O caçador tería sido o primeiro a "contar uma história" porque era o único capaz de ler, nas pegadas mudas (se não imperceptíveis) deixadas pela sua presa, uma série coerente de acontecimentos. ,u
Esse modelo de narrativa, superior àqueles, antropológico ou ético, nos quais Erye e Ricoeur se fundamentavam para reabilitar a -mimèsis, faz dela igualmente um conhecimento. A mimèsis não tem, pois, nada mais de uma cópia. Ela constitui uma forma especial de conhecimento do mundo humano, segundo uma análise da narrativa muito diferente dn sintaxe que os adversários dn mimèsis procuravam elaborar, e que inclui o tempo do reconhecimento. Certamenre a teoria literária já havia relido a Poética, acentuando o muibos, a sintaxe da narrativa, mas não a clianoia nem a anagnôrisis, não o sentido nem a interpretação. De diferentes maneiras a mimèsis foi relignda ao mundo.
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OS MUNDOS FICCIONAIS
O triunfo fácil da teoria da literatura sobre a mimèsis dependia de uma concepção simplista e exacerbada da referência lingüística: oi! a alucinação ou nada. Mas outras teorias da referência mais sutis estão à nossa disposição há muito tempo: elas permitem que repensemos as relações da literatura com a realidade e desse modo inocentar igualmente a mimèsis. Esta explora as propriedades referenciais da linguagem comum, ligadas sobretudo aos índices, aos dêiticos e nos nomes próprios. Mas o problema é o seguinte: a condição lógica (pragmática) de a referência ser possível é a* existência de alguma coisa a respeito da qual proposições verdadeiras ou falsas sejam possíveis. Para que haja referência a alguma coisa, é preciso que essa coisa exista (a proposição: "O rei da França é calvo", lembremo-nos, não é verdadeira nem falsa).
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Em outras palavras: a referência pressupõe a existência; alguma coisa eleve existir para que a linguagem possa referir-se a ela.
Ora, em literatura, as expressões referenciais propriamente clitas são em número limitado: nn primeira pagina de LePere Corioí [O Pai Goriot], Paris e a rua Neuve-Sainte-Geneviève têm referências mundanas, mas não Madame Vauquer, nem sua pensão, nem o velho Goriot, que não existem fora do romance. No entanto, o narrador exclama já ã segunda página: "Ah! saibam todos: este drama não é nem uma ficção, nem um romance. AH is tnie." Nem por isso o leitor abandona o livro; contínua a leitura como se nada houvesse acontecido. Em Um Coração Simples, a palavra "barômetro" não é propriamente referencial, já que o barômetro não existe fora do romance. Se a proposição existencial não é realizada, podería, contudo, a linguagem da ficção ser referencial? Quais seriam os referentes num mundo de ficção? Os lógicos analisaram esse problema. Num romance, responderam eles, a palavra parece ter uma referência; eia cria uma ilusão de referência; ela imita as propriedades referenciais da linguagem comum. Assim, Austin, em Quand Dire, c’Est Paire [Quando Dizer É Fazer] (1962), situava a literatura ã margem dos atos de linguagem ispeech acts, segundo o termo de Searle). Para que haja um ato de linguagem, por exemplo um performativo em palavras como "Eu prometo que...", ele propunha na realidade esta condição: “Ninguém negará, penso eu, que estas palavras devam ser pronunciadas 'seriamente', e de maneira a serem tomadas ‘a sério’ 1...]. Não devo estar brincando, por exemplo, nem escrevendo um poema."51 Como aconrece no caso de uma brincadeira ou de uma encenação teatral, o poema não nos obriga a nada.
Uma enunciação períormativa será considerada particulannente oca ou vazia, se, por exemplo, ela for formulada por um ator no palco, ou introduzida num poema [...]. É claro que em tais circunstâncias a linguagem não é empregada seriamente, nem de maneira particular, mas é claro que se trata de um uso parasitário em relação ao uso normal — purasitismo cujo estudo tem a ver com a área do enfraquecimento da linguagemé-1
Austin assimilava a poesia n brincadeira, já que lhe faltava seriedade, e a língua literária era fruto de um parasitismo e de um enfraquecimento da língua comum. Essas metáforas
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1:
vV'podem chocar aqueles que gostam da literatura e preferem ..‘."pensar que a língua literária, ao contrário, é superior e não "inferior à língua comum, mas elas têm o mérito de acentuar ^'por que e como os enunciados da ficção diferem dos enunciados :V"'' 'da vida corrente. Senrte, por sua vez, descreveu o enunciado J£: .de ficção como uma asserção fingida, já que não responde ãs Íí'; condições pragmáticas (sinceridade, compromisso, capacidade ..de provar o que diz) da asserção autêntica.53 Em poesia, um ato de linguagem aparente não é realmente um ato de linguagem, mas somente a miniòsis de um ato de linguagem real. A apóstrofe à Morte, ao fim do poema "Voyage”, por exemplo: "Verta f V; sobre nós teu veneno para que ele nos reconfortel", não é realmente uma ordem, mas somente uma imitação de uma ordem, um ato de linguagem fictício que se inscreve num ato de linguagem real, que é escrever um poemn.
Assim, na ficção se realizam os mesmos atos cie linguagem que no mundo real: perguntas e promessas são feitas, ordens são dadas. Mas são atos fictícios, concebidos e combinados pelo autor para compor um único ato de linguagem real: o poema. A literatura explora as propriedades referenciais da linguagem; seus atos de linguagem são fictícios, mas, uma vez que entramos na literatura, que nos instalamos nela, o funcionamento dos atos de linguagem fictícios é exatamente o mesmo que o dos atos de linguagem reais, fora da literatura.
Não resta dúvida que o uso ficcional da linguagem infringe o axioma cie existência dos lógicos: "Não se pode fazer referência senão àquilo que existe." Recentemente, entretanto, a filosofia analítica, até então consagrada exclusivamente ãs relações da linguagem com a realidade, exceção feita ãs frases do gênero “O rei da França é calvo", interessou-se cada vez mais pelos mundos possíveis, dos quais os mundos ficcionais são uma variável. Ao invés de destacar uma parte da linguagem comum, a fim de isolar uma linguagem bem-formulada, a da lógica, como se fazia desde Aristóteles, os filósofos da linguagem tornaram-se mais tolerantes para com as práticas linguageiras existentes, ou mais curiosos em relação às suas práticas, e interessaram-se, pois, pelos mundos produzidos pelos jogos de linguagem-, procuraram analisá-los. Assim, a reflexão sobre a referência literária foi reaberta no âmbito da semântica dos mundos possíveis ou ficcionais.
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Os acontecimentos cie um romance, escreve Pavel no Univers cie !a Ficiion [Universo da Ficção] 0988), onde estuda os trabalhos dos filósofos sobre os mundos possíveis, têm "um ripo de realidade que lhes é própria",54 vima realidade contígua a realidade dos mundos reais. Tradicionalmente, os filósofos consideravam que os seres de ficção não tinham estatuto ontológico, assim, todas as proposições a seu respeito não eram nem verdadeiras nem falsas, mas simplesmente mal- formuladas e inapropriadas. A frase “O uetbo Goriot estava às oito horas e meia na rua Dnuphine”, não era a seu ver pertinente. No entanto, essa frase existe: nos mundos possíveis, para que proposições sejam válidas, não é necessário que tratem do mesmo repertório de indivíduos que no mundo real; basca pedir aos indivíduos dos mundos possíveis que sejam compatíveis com o mundo real. Como já dizia Aristóteles: "O papel do poeta é de dizer não o que se realiza realmente, mas o que podería renlizar-se na ordem do verossímil e do necessário.” (1451a 36) Em outras palavras, a referência funciona nos mundos ficcionais enquanto permanecem compatíveis com o mundo real, mas ela seria bloqueada se o velho Goriot começasse de repente a desenhar círculos quadrados. A literatura mistura continuamente o mundo real e o mundo possível: ela se interessa pelos personagens e pelos acontecimentos reais (a Revolução Francesa está bem presente em O Pai Goriot), e a personagem de ficção é um indivíduo que poder ia ter existido num outro estado de coisas. Pavel conclui:
Em muitas situações históricas, os escritores e seu público consideram como ponto pacífico que a obra literária descreve conteúdos que são efetivamente possíveis e têm relação com o mundo real. Essa atitude corresponde a literatura realista, no sentido amplo do termo. Considerado assim, o realismo não é, pois, unicamente um conjunto de convenções estilísticas e narrativas, mas uma atitude fundamental referente às relações entre o universo real e a verdade dos textos literários. Numa perspectiva realista, o critério de verdade ou falsidade de uma obra literária e de seus detalhes é baseado na noção de possibilidade [...1 em relação ao universo real.55
Os textos de ficção utilizam, pois, os mesmos mecanismos referenciais da linguagem não ficcional para referir-se a mundos ficcionais considerados como mundos possíveis. Os
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leitores são colocados dentro do mundo da ficção e, enquanto dura o jogo, consideram esse mundo verdadeiro, até o momenro em que o herói começa a desenhar círculos quadrados, o que rompe o contrato de leitura, a famosa "suspensão voluntária da incredulidade”.
O MUNDO DOS LIVROS
“O livro é um mundo", observava Barthes em Crítica e Verdade. “O crítico diante do livro se encontra nas mesmas condições de palavra que o escritor diante do inundo."51’ Baseado nesta afirmação — o livro é um mundo —, ele concluía pela similiiude de situação entre o escritor e o crítico, uma identidade entre a literatura em primeiro grau e a literatura em segundo grau. Essa equação, confortável para a crítica, conheceu seu momento de glória. O crítico seria, também ele, um escritor completo, porque ele fala do livro como o escritor fala do mundo. A questão é que Barthes afirma, por outro lado, que o escritor, diante do mundo, não fala do mundo, mas do livro, porque a linguagem é impotente diante do mundo. O crítico está diante do livro como o escritor está diante do mundo, mas o escritor não esrá nunca diante do mundo; há sempre o livro entre ele e o mundo. A proposição "o livro é um mundo” é obvia mente reversível, c ela não é a verdadeira premissa da teoria, que permitida fundar logicamente o parentesco, ou até a identidade, entre crítico e escritor; a verdadeira premissa é a proposição inversa: "o mundo é um livro”, ou “o mundo já é (semprejã) um livro". O crítico é também um escritor porque o escritor já é um crítico; o livro é um mundo porque o mundo é um livro. Barthes escreve "o livro é um mundo” quando devería escrever “o mundo é um livro”, ou , então, “não é mais do que um livro", ao mesmo tempo para se conformar com a idéia do arbitrário da língua e para justificar a identidade entre o crítico e o escritor. Mas a negação da realidade, proclamada pela teoria literária, não é mais que uma negação, ou o que Freud chama dc uma denegação, isto é, uma negação que coexiste, numa espécie de consciência dupla, com a crença incoercível de que o livro fala "apesar de tudo" do mundo, ou que cie constitui
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um inundo, ou um “quase-mundo", como falam os filósofos analíticos a respeito cia ficção.
Na realidade, o conteúdo, o fundo, o real nunca foram total mente alijados da teoria literária. Talvez até possamos dizer que a negação da referência observada pelos teóricos não tenha sido mais que um álibi para poder continuar falando do realismo, não da poesia pura, não cio romance puro, apesar de sua adesão formal ao movimento literário modernista e vanguardisca. Assim, a narratologia e a poética foram autorizadas a continuar a ler verdadeiros bons romances, mas como se não tocassem neles, sem beber desse vinho, sem ser por eles enganados. O fim da representação teria sido um mito, pois crê-se num mito e ao mesmo tempo não se crê nele. Esse mito foi alimentado por algumas frases tiradas de Mallarmé: “Tudo, no mundo, existe para culminar num,livro”, ou de Flnubert e de seu sonho de um “livro sobre nacla”. Paul de Man, como sempre o analista mais duro em relação aos encantos da teoria, observava, no entanto, que, mesmo em Mallarmé, o real nunca está de todo ausente em substituição a uma lógica puramente alegórica. Se Mallarmé postula um limite nãóTéferénciãr parada poesia e tende de fato a reduzir o papel da referência em poesia, sua obra não se situa porém nesse limite, que a tornaria afinal de contas inútil, mas mais ou menos longe da assíntota que a ela conduz. Mallarmé, dizia ele, permanece um "poeta cia representação”, pois “a poesia nào renuncia tão facilmente e n tão baixo custo à sua função mimética 1...1.”57 Mas é ainda essa violenta lógica binária, terrorista, maniqueísta, tão ao gosto dos literatos ^ fundo ou forma, descrição ou narração, representação ou*significação >— que nos leva a alternativas dramáticas e nos joga contra a parede e os moinhos de vento. Aò passo que a literatura é o próprio entrelugar, a interface.
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